sexta-feira, 24 de julho de 2009






Companhia de Caçadores 2470

Recordando

Foi um marco importante na vida de todos nós. Volvidos já dois anos sobre a data em que rumámos para longe dos lares, das famílias, dos hábitos adquiridos e enraizados, é natural que nos interroguemos sobre a valia do nosso esforço, a evolução da nossa personalidade, os episódios que dum ou doutro modo nos marcaram, que tentemos, enfim, fazer um balanço desta nossa experiência africana.
Curiosamente não são os momentos difíceis que estão mais presentes no nosso espírito, ao contrário do que imagináramos que viesse a acontecer. Todos nós tivemos, por certo, ocasiões de desânimo total, em que a sede, o cansaço, o medo (porque não admiti-lo? Só os inconscientes o não têm…) nos fizeram pensar que «nunca mais esqueceríamos aquele dia». E, afinal, recordamos sobretudo a piada oportuna, o episódio burlesco, as pequenas sensações agradáveis do regresso ao quartel, depois de uns dias no mato – o banho, uma cama, a comida servida com prato e talheres, as cartas que nos aguardavam, tudo o que nos reconciliava com a vida.
Mas, recordemos…
Não pode dizer-se que tenham sido pouco felizes os nossos primeiros contactos com a actividade operacional. De facto, ao cabo de quinze dias de permanência no Fingoé, patrulhando os arredores do quartel para criar a habituação com a «selva», que imagináramos, e tomando por cobras, inofensivos tubos de plástico para a conduta de água, tínhamos já no nosso activo duas importantes capturas – um cipaio da Administração e um enfermeiro local, cujos «crimes» principais eram a sua cor escura e a nossa terrível boa vontade e ingenuidade de «checas» que nos fazia ver o inimigo a qualquer esquina.
Mas, o correr dos meses trouxe-nos a calma, a lucidez e a confiança; os músculos adaptavam-se às marchas duras, os ouvidos apuravam-se, a entre ajuda crescia. As patrulhas foram sendo substituídas por operações de intervenção, cada vez mais frequentes, e a época seca de 1969 encontrou-nos já plenamente integrados na missão que se nos pedia. Foi um pedido duro aquele; foi, para muitos, a revelação de energias, de determinação e de coragem, de que não se sabiam possuidores. Cedo nos apercebemos que nem sempre o resultado estava na razão directa do esforço; quantas vezes eram as operações menos desgastantes e perigosas, as que nos traziam mais compensações. E aprendemos assim a dominar a frustração.
Aproximava-se entretanto, o fim do primeiro ano de Comissão, e surgiram os inevitáveis boatos: «parece que a Companhia vai para a recta dos leões»; «o Batalhão vai para Tete e nó para mutarara»…
E a mudança chegou de facto, mas para Gago Coutinho, logo alcunhada de «Mutarara de Cima» numa reacção salutar contra a decepção que todos sentiram no seu íntimo. Mas se fosse possível representar num gráfico a produtividade da Subunidade, seria, precisamente, ai, naquela isolada área de fronteira, que se teria atingido o ponto máximo. A sensação de ter, enfim, «uma casa própria» (no Fingoé, éramos, apesar de tudo, uns hóspedes, se bem que em excelentes relações com os senhorios) foi, talvez, o catalizador de esforços e vontades; a par da actividade operacional, já nossa conhecida, começou o trabalho árduo da construção de abrigos e paliçadas, de melhoramentos nos edifícios e de cultivo das terras. Os autóctones habituaram-se a vir ter connosco para o transporte dos produtos e dos seus doentes, e o tractor foi convertido no nosso melhor instrumento de acção psicológica ao serviço das populações.
Daqui a uns anos, quando os episódios se esfumarem, ainda mais, Gago Coutinho terá, sempre, terá sempre um lugar de evidência nas nossas recordações.
Junho de 1970. A passagem no Zambeze, na Chicoa, a caminho duma zona não activa, foi um momento de emoção. Para traz ficavam dezassete meses vividos com a intensidade característica dos que moram paredes méis com o perigo. Esperava-nos a Zambézia e o deslumbramento de verificar que, afinal, havia picadas onde se podia andar de Jeep… Aqui, se iniciou um tipo de missão completamente diferente – o contacto com as populações em patrulhas de reconhecimento e de acção psicológica – que seria continuada quando, dois meses mais tarde, a Companhia mudou para o sul da Província.
Foi, pois, um longo roteiro, que nos levou a ocupar os mais diferentes tipos de aquartelamentos e a conhecer as mais diversas regiões: Fingoé, Chipera, Vasco da Gama, Gago Coutinho, Alto Molócué, Gilé, Erego, Ponta Mahone, Inhambane, Mabote e Maxixe.
Falamos, ao princípio, em tentar fazer um balanço…
Será possível, em consciência, colocar do lado do activo uns tantos inimigos abatidos, prisioneiros e populações recuperadas, armas apreendidas, quando temos no nosso passivo a recordação bem nítida do Amaral (morto em combate em 18 de Junho de 1969), dos Furriéis Garroa e Jorge, do Alves, do «Runa», do Gabriel, do Carvalho, do Neves?... Não poderia, de facto, apurar-se um saldo, se fosse essa a nossa perspectiva.
Mas, atentemos nas populações que ajudámos e esclarecemos, com quem compartilhámos os nossos conhecimentos e a quem demos a nossa amizade; reparemos na mudança que sofreram as nossa personalidades, agora temperadas pelo autodomínio,
Pela confiança e pela tenacidade – dois anos que transformaram mais de uma centena de rapazes em homens adultos e válidos.
Valeu a pena?!...
No futuro, quando nos interrogamos, libertos, então, do peso dos momentos ainda há pouco vividos, será, certamente, afirmativa a resposta.

1 comentário:

  1. Um texto com algum sentido. Penso que conheço o autor, mas não garanto... :-)

    Parabens ao Bento Guerreiro pela iniciativa.

    Oportunamente, contribuirei com algumas fotos. O então sargento Ferreira é que deve ter uma colecção fabulosa desses tempos. Alguem tem as coordenadas?

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