domingo, 5 de julho de 2009





A Viagem

A Viagem para África começava muito antes do embarque. O processo que levava um jovem até Angola, Guiné ou Moçambique iniciava-se habitualmente logo após o final da instrução da especialidade. Para um atirador, e tanto fazia sê-lo de infantaria, cavalaria ou artilharia, após ser dado como pronto vinha a ordem de mobilização. O caso mais vulgar e típico era o de o militar pertencer a uma companhia e esta a um batalhão. A ordem de mobilização originava a guia de marcha para a unidade mobilizadora. Aí se juntavam os militares vindos dos vários centros de instrução, os graduados e os comandantes. A companhia e o batalhão já tinham um número de código atribuído e, aos poucos, surgiam os especialistas diversos, os condutores, transmissões, enfermeiros e cozinheiros, de modo a que se preenchesse o quadro orgânico respectivo. Enquanto se formava a unidade, realizavam-se os exercícios de instrução - IAO, a instrução de aperfeiçoamento operacional -, com os conselhos sobre o que fazer em África para sobreviver. Recebiam-se as vacinas, o camuflado e, por fim, a unidade estava pronta. Chegava a ordem de embarque e então o contingente formava na parada do quartel. Nos primeiros tempos, o capelão rezava uma missa campal, que depois caiu em desuso; o comandante da unidade mobilizadora, um coronel, proferia umas palavras alusivas à missão e entregava o guião ao comandante do batalhão mobilizado, um tenente-coronel, ou então da companhia, um capitão; as tropas desfilavam ao som da música, era concedida a licença de dez dias antes de embarque e pagas as ajudas de custo. Neste momento, o militar era um mobilizado, ia a casa, despedia-se da família, fazia umas asneiras por conta, arranjava umas correspondentes para lhe escreverem, ou umas madrinhas de guerra, e voltava à unidade mobilizadora para daí iniciar verdadeiramente a viagem. Neste regresso faltavam uns quantos camaradas, que tinham decidido dar o salto para o estrangeiro ou baixado ao hospital com uma doença mesmo a calhar, mas os que restavam formavam de novo na parada do quartel, com as malas, e embarcavam nas viaturas militares para a estação de caminho de ferro mais próxima. Na estação, quase sempre de noite, o contingente embarcava num comboio especial em direcção a Lisboa, ao Cais da Rocha ou ao de AIcântara. O navio que os iria levar estava atracado e as famílias apinhavam-se nas varandas da gare marítima com lenços de acenar, cartazes com o nome do militar, para chamar a atenção, e lágrimas da despedida. A tropa, vinda de vários pontos em quantidade suficiente para encher o navio, desfilava de novo, agora em continência perante um alto representante militar, com as senhoras do Movimento Nacional Feminino e da Cruz Vermelha a distribuírem lembranças e mais folhetos sobre o território de destino. Chegava o momento do embarque. Subiam-se as escadas e arrumava-se a bagagem junto ao beliche armado nos porões, transformados em casernas. Depois, voltava-se ao convés, lutava-se por um lugar na amurada ou trepava-se aos mastros, para os últimos acenos. Por volta do meio-dia, o navio recolhia as escadas e os cabos, a sirena apitava e, durante alguns anos, a instalação sonora tocava a marcha intitulada "Angola é Nossa", independentemente do destino - um ritual abandonado nos anos mais próximos do fim da guerra. O navio afastava-se lentamente, virava a proa à foz do Tejo, passava por baixo da ponte e deslizava diante da Torre de Belém. A fome já apertava e eram dadas instruções para a primeira refeição abordo. Os oficiais seguiam para a primeira classe, os sargentos para a segunda e os praças para a terceira, Neste caso, e dada a grande quantidade de tropas embarcadas, havia um sistema de self-service. Cada grupo nomeava os seus faxinas, que se aproximavam dos caldeirões, montados à proa e à ré, para receber um tacho de sopa, um de «segundo», o pão e a fruta, que redistribuíam aos seus camaradas, no regresso aos seus postos. Comia-se como num piquenique, sentado no convés. Este sistema já funcionava mal com o mar calmo, mas piorava nos dias de tempestade. Nesses dias, os respingos do mar salgavam a comida, os faxinas desequilibravam-se com o balanço, entornando a sopa, e os restos espalhados ajudavam a escorregar os que vinham em sentido contrário. Valia nessas ocasiões o enjoo da maioria, que os tornava menos exigentes na qualidade e quantidade da alimentação. A meio da viagem realizavam-se.exercícios de salvamento a bordo, e todo o contingente enfiava o colete salva-vidas e cada um apresentava-se junto à baleeira que lhe estava destinada, em caso de, naufrágio. Tiravam-se umas fotografias e estava passada mais uma tarde. Os dias de calma eram gastos a jogar às cartas e a receber alguma instrução sobre o destino, em que ninguém, verdadeiramente, queria pensar. A passagem do equador fornecia o pretexto para uma cerimónia da praxe e, entretanto, aproximava-se a chegada, que, quase sempre de manhã, era o tempo da curiosidade de África, o tempo de refazer as malas e do desembarque. Nova formatura, agora ao calor, um desfile e um discurso. Depois, a partida para um campo militar, o Grafanil, em Luanda, o Cumeré, em Bissau. Aqueles para quem Moçambique era o destino, prosseguiam viagem de Lourenço Marques para norte, até à Beira, Nacala ou Porto Amélia. A partir daqui, seguiam-se os dois anos da comissão.

2 comentários:

  1. Olá! Eu sou o ex-alferes Braz Gonçalves da C.Caç. 2470 que serviu em Moçambique nas zonas descritas no texto. Os outros alferes eram o Raimundo, o Osório e o Pinto. O cmdt da Comp. era o capitão Vaz. Os meus furrieis eram, se bem me lembro, o Reis,o Alves e o Rui. Se tens os contactos de alguns camaradas manda para o meu email jbr.goncalves@gmail.com. Estou fora de Portugal há mais de trinta e cinco anos e gostaria de relembrar os bons e maus momentos que passámos juntos. Neste momento estou a viver em Nampula e tenho passado pelas ruínas dos nossos quarteis, Alto Molocué, Gilé, Gurué, Mabote, Inhambane (este está em bom estado)e Catembe. A Tete ainda não fui, pois fica distante e fora dos meus afazeres profissionais.
    Li o teu perfil, mas sinceramente não me recordo de ti. Alentejanos havia poucos. Tenho uma vaga ideia de um moço baixinho que tocava acordeon e era o barbeiro da Companhia. Já lá vão 40 anos e estas coisas perdem-se na memória do tempo. Um abraço.

    ResponderEliminar
  2. Este relato da viagem está excelente. Fez-me reviver alguns detalhes já esbatidos.

    Lembro-me bem do autor. Um tipo fixe que, a partir de certa altura foi o meu guarda-costas nas operações em que eu participava. Alentejano dos autênticos: leal, que diz e actua como pensa e sem subterfúgios.

    Claro que me lembro tambem do Braz Gonçalves. Corajoso e competente. Tinha vindo dos rangers de Lamego, se não me falha a memória. Nos intervalos da guerra, jogavamos Mah Jong com os outros oficiais, tendo como moeda... cigarros.

    ResponderEliminar